No mundo inteiro -e em escala jamais vista nos últimos 25 anos - governos vêm crescentemente enfrentando atores da sociedade civil. O tema precisa ser incluído com urgência na pauta dos debates de assuntos de relações exteriores e de desenvolvimento dos governos democráticos.
“ONGs correm risco –Índia quer calar organizações independentes”; “Zero crítica – sociedade civil egípcia sofre com novas repressões”; “Camboja quer adotar nova lei que limita ação da sociedade civil”; “Bolívia sacrifica a defesa da natureza e ameaça ONGs que se opõem”; “Pior do que Putin: China desconfia de ONGs”; “Rússia convida ONGs indesejadasa se retirarem do país”.
Este é apenas um pequeno recorte entre as notícias de governos que confrontam organizações não-governamentais (ONGs). Há bastante tempo observa-se uma tendência preocupante. Em todos os continentes e independentemente da orientação política, governos enfrentam massivamente atores da sociedade civil: ONGs, ativistas sociais e ambientais, defensores dos direitos das mulheres e de direitos humanos. Encolhemos espaços de ação para atores que criticam políticas governamentais, reivindicam democracia e direitos humanos, manifestam-se contra megaprojetos, protestam contra calamidades sociais, desapropriações de terras e destruição ambiental. Cada vez mais, esses atores entram na mira da violência governamental e privada e se tornam alvo de campanhas de difamação, repressão ou criminalização.
Enquanto fundação política fortemente enraizada nas sociedades civis dos países parceiros, nós vivenciamos de perto o quanto os espaços de ação estão encolhendo, em alguns casos praticamente impossibilitando o trabalho político. Para um sem-número de governos na África, na Ásia, na América Latina, no Oriente Próximo e no Oriente Médio, uma sociedade civil crítica não só é uma pedra no sapato como vem sendo cada vez mais combatida em escala inédita nos últimos 25 anos.
Intimidar, difamar ou mesmo proibir a sociedade civil não chega a ser um fenômeno novo. Os direitos fundamentais sobre a liberdade de reunião, organização e de expressão enraizados na Declaração Geral dos Direitos Humanos foram e continuam sendo proibidos até hoje para muita gente no mundo inteiro. Mas há algum tempo estamos assistindo uma mudança qualitativa. Os espaços de ação para atores críticos da sociedade civil vêm sendo maciçamente limitados, não apenas por regimes autoritários ou semiautoritários como também por governos democráticos.
Muitos avanços em termos de democratização alcançados no Leste Europeu, na África e na América Latina (terceira onda de democratização) depois do fim da Guerra Fria estão sofrendo retrocessos. Direitos de participação são revogados. Mais ainda: cada vez mais, governos se unem em uma verdadeira ofensiva contra o envolvimento da sociedade civil.
Há algum tempo, dezenas de países na África, na Ásia, na América Latina, no Leste Europeu, no Oriente Próximo e Médio vêm colocando obstáculos ao fomento externo de práticas democráticas. Isso ocorre através de um conjunto de medidas: leis, exigências burocráticas e fiscais, chicanas, campanhas difamatórias, métodos de polícia secreta e repressão aberta. Parece que valem todas as formas de restrição: prisão de ativistas,congelamento de contas, ameaças verbais, cassação de licenças, bloqueio de páginas na internet, obrigatoriedade de registros e fechamento de escritórios.
Por que os governos limitam os espaços de ação?
Os observadores dessa nova tendência partem do pressuposto de que não se trata de um novo fenômeno temporário, mas que ele está intimamente ligado a transformações fundamentais no panorama político internacional.[1] Mais do que nunca, economias em ascensão do sul fincam pé na salvaguarda de sua soberania e consideram que a cooperação e as redes internacionais de atores da sociedade civil constituem uma ingerência inadmissível em assuntos internos. As motivações e justificativas podem até variar. Mas o denominador comum é a manutenção do poder político e a garantia dos interesses econômicos das elites. Procura-se sufocar em seu nascedouro os protestos, principalmente os organizados.
As razões e as origens da limitação dos espaços de ação são múltiplas e entrelaçadas: de maneira geral, o fomento ocidental às práticas democráticas perdeu legitimidade. De um lado, as transferências de recursos de países industrializados para apoiar processos de democratização são vistas com muito mais crítica hoje do que ainda nos anos 1990, sobretudo quando esses recursos não beneficiam apenas destinatários estatais, mas também privados. Estes últimos se tornaram alvo dos governantes. Os governos do Sul querem manter ou reconquistar o controle total sobre os fluxos de dinheiro estrangeiro. Para este fim, as leis que dizem respeito às ONGs são uma peça fundamental (ver abaixo).
A resistência contra o fomento externo à democracia vem sendo justificado com a bandeira da “soberania” do país, categoria fundamental do direito internacional que atingiu alto grau de importância em vários países depois das lutas contra o colonialismo. A partir desta perspectiva, a ajuda às práticas democráticas é vista como ingerência inadmissível.
O fantasma das “revoluções coloridas”e da Primavera Árabe tem um papel importante. “Em meados da primeira década do segundo milênio (...), o fomento à democracia se tornou sinônimo de um câmbio de regime imposto pelo ocidente "[2]. Os ataques de 11 de setembro de 2001 e a guerra contra o terror no Afeganistão e no Iraque reforçaram essa postura contra qualquer forma de influência política vinda do Ocidente. As intervenções militares foram equiparadas à aura da agenda pela liberdade e da promoção da democracia. Resultado: tanto a democracia quanto a liberdade perderam maciçamente em credibilidade, aceitação e legitimidade.[3]
As manifestações de solidariedade do Ocidente com as revoluções coloridas na Geórgia, na Ucrânia e na Ásia Central, bem como as revoluções no OrientePróximo e Médio, a partir de 2011, só aumentaramo afastamento do Ocidente. Outro motivo para a massiva resistência de atividades da sociedade civil tem sido o grande crescimento de protestos políticos, sociais e ambientais e mobilizações de massas ao redor do globo. A corrupção e o abuso de poder das elites leva às ruas centenas de milhares de pessoas, seja no Brasil, na Venezuela ou na Romênia.Carothers e Young contaram 60 megaprotestos no mundo inteiro, “muitas vezes, aglomerações em larga escala de cidadãos determinados a desafiar políticas ou estruturas de poder fundamentais”.[4].
Multiplicam-se também os protestos locais contra construção de barragens, desmatamento ilegal e desapropriações fundiárias, bem como contra as consequências sociais e ambientais de atividades de mineração e de outros grandes projetos de infraestrutura. Na era digital, esses protestos locais são colocados na rede com muita rapidez, atingindo a opinião pública internacional e as redes políticas e tornando-se visíveis. É o que as elites políticas e econômicas em muitos países parecem querer impedir, por verem seus modelos de desenvolvimento e lucros ameaçados.
Este argumento – zero ingerência em assuntos internos – costuma ser brandido por governos e meios de comunicação, não raro bastante sintonizados uns com os outros, quando atores externos formam redes políticas ou financeiras com ativistas e organizações sociais e ambientais locais. A mesma figura de argumentação também é utilizada por governos democráticos para deslegitimar protestos contra oleodutos ou minas de carvão ou então difamá-los como sendo comandados do estrangeiro (Índia, Canadá e Austrália).
O espaço de ação de atores críticos da sociedade civil há muito tempo vem sendo limitado com a ajuda de um sem-número de leis. O controle estatal sobre a internet vem sendo reforçado por leis específicas para os meios de comunicação. Mais de 140 “leis antiterror” voltam-se não apenas contra terroristas, mas em muitos casos também contra a oposição e a sociedade civil crítica e democrática, acusada de terrorismo. Por isso, é importante olhar em detalhe toda a gama das leis para compreender todas as dimensões que restringem a ação e a influência de sociedades civis críticas. A seguir, trataremos exclusivamente das novas legislações sobre ONGs, uma vez que constituem o instrumento mais importante para fechar o fluxo de dinheiro estrangeiro para atores da sociedade civil local.
As novas legislações para organizações não governamentais
As chamadas leis para ONGs, que regulam as relações entre ONGs nacionais e internacionais (fluxosfinanceiros, registros, deveres profissionais etc.) tiveram um verdadeiro boom. Tais regulamentações são totalmente legítimas. Na Alemanha, são estas as leis que determinam as regras sobre atividades sem fins lucrativos, sobre tributação e padrões mínimos para processos dentro da organização (estatutos, eleições, obrigatoriedade de prestação de contas, etc.). A transparência e a legitimidade são fatores centrais para a credibilidade e a ação das ONGs. Isso nem sempre é o caso. Nem sempre há selos independentes de doadores [5] e regras indiscutíveis, como existem, entre outros países, na Alemanha. Há ONGs em países de desenvolvimento penduradas completamente nas tetas de doadores estrangeiros. Aqui como lá, é legítimo querer fazer indagações críticas sobre a legitimidade ou o enraizamento nas respectivas sociedades civis.
Já existe um grande número de análises críticas e publicações sobre a ambivalência, o papel e a função da sociedade civil (por exemplo, ela é cooptada e instrumentalizada pelo governo?) [6], nas quais não me aprofundarei neste momento. No contexto da legislação específica para ONGs, trata-se em primeiro lugar de julgar o quanto as regulamentações legais cerceiam a liberdade de organização (um dos direitos universais do homem) e respeitam ou não a independência das organizações. Quais procedimentos legais estão garantidos quando se priva uma organização do direito de se organizar? Em mais de 60 países foram adotadas ou apresentadas leis para ONGs nos últimos três anos que questionam esses princípios. Em seu último relatório, a organização Civicus (Aliança Mundial para a Participação Cidadã), uma rede internacional de organizações da sociedade civil, registrou 96 restrições significativas aos direitos da sociedade civil somente entre junho de 2014 e maio de 2015.[7]
O objetivo central das leis recentes ou mais antigas sobre as ONGs que estão sendo modificadas é interromper o fluxo financeiro internacional para as organizações nacionais, respectivamente submeter esses fluxos financeiros ao controle estatal. A lei etíope de 2009, por exemplo, proíbe qualquer atividade política a todas as ONGs nacionais que recebem mais de 10% de seu orçamento do exterior. Em Israel, há uma lei tramitando no Parlamento estabelecendo que as ONGs que recebem mais da metade de seus recursos de organizações externas devem registrar o fato em todos os seus documentos, além de portar um distintivo no Parlamento israelense informando que são financiadas pelo exterior.Isso mostra a ambivalência dos governos: continuam querendo que venha dinheiro para o país, mas apenas para assuntos políticosdo interesse do governo ou para projetos ambientais ou sociais sem qualquer cunho político.
A lei indiana que regula as contribuições financeiras externas (Foreign Contribution Regulation Act, FCRA) concede às ONGs que recebem dinheiro estrangeiro uma licença sob condição de que esses recursos não financiem trabalhos políticos. Há algum tempo as autoridades indianas vêm investigando com mais rigor se os diferentes requisitos do governo estão sendo obedecidos. Uma das vítimas mais famosas do controle mais rigoroso do governo indiano é o Greenpeace indiano, que acabou sendo perdendo sua licença do FCRA.
Requisitos administrativos
Uma ferramenta especial para restringir os espaços de ação e que intimida são as regras para o registro e a obrigatoriedade de enviar relatórios. A lei das ONGs na Rússia alcançou fama e encontrou inspiração (por exemplo, na Malásia e no projeto de lei israelense). Quem receber dinheiro do exterior deve se registrar como “agente estrangeiro”. Designar mentes e atores críticos como “agentes do ocidente” tornou-se um lance popular nas campanhas de difamação, seja na Venezuela, na Malásia, no Equador ou na Rússia.
Um grande número de países exige ainda que atores financiados pelo exterior e organizações estrangeiras que atuam no país informem sobre suas atividades planejadas e as façam aprovar (Etiópia, Jordânia, Nepal Turcomenistão) ou então que seus recursos fluam através de canais estatais. Some-se a isso obrigações de relatórios que têm caráter de artimanhas e não são orientadas por um interesse legítimo em transparência e a obrigatoriedade de prestação de contas (Indonésia, Índia, Bangladesh).
O projeto de lei para regulamentar ONGs estrangeiras na China prevê que a autoridade competente seja o Ministério para Segurança Pública, e não o Ministérios para Assuntos Civis, responsável pelo registro de ONGs chinesas. No verão de 2015, o Camboja aprovou a toque de caixa uma lei para as ONGs, proibindo atividades que possam pôr em risco a paz, a estabilidade, a ordem pública, bem como a cultura ou as tradições do país.
Tais formulações são típicas para quase todas as novas legislações que dizem respeito a ONGs. Ao limitar ou proibir o trabalho político, alegam que as ONGs não podem atentar contra “a segurança e a ordem pública” ou contra interesses nacionais. Tais formulações deliberadamente abertas deixam margem a interpretações e, com isso, ao arbítrio governamental. Em muitos países, a segurança interna e a luta contra o terrorismo servem de pretexto para emudecer ou proibir organizações democráticas. Essa suspeita generalizada adquire contornos extremos no Egito. Ali, praticamente não existem mais espaços para um envolvimento ainda que tímido da sociedade civil ou o trabalho da mídia. Vários ativistas de direitos humanos estimam que a situação é pior do que sob o regime de Hosni Mubarak, o qual ainda permitia a ativistas de direitos humanos e outras mentes críticas alguma atuação ou zonas cinzentas da lei.
Ameaças, prisão e censura contra vozes críticas
A prioridade dos países autocráticos é sufocar no nascedouro qualquer forma de organização ou de protesto público. As leis que se referem às ONGs não são as únicas medidas jurídicas que restringem o campo de ação da sociedade civil: leis de segurança nacional, leis antiterror, leis para a imprensa também limitam a atuação de atores da sociedade civil, movimentos sociais, jornalistas, advogados, blogueiros e associações profissionais.
Em países democráticos ou parcialmente democráticos observamos que crescentemente um pacote de medidas jurídicas, administrativas e repressivas do governo se volta sobretudo contra movimentos sociais e ONGs as quais combatem megaprojetos como mineração de carvão, exploração de petróleo e gás, desapropriações fundiárias e outros projetos de infraestrutura. Não é só na China, na Rússia, na Índia, na Etiópia na Turquia ou no Camboja que ambientalistas se veem sob pressão como parte da sociedade civil. Em qualquer lugar onde se trata do controle do acesso e da exploração de recursos naturais estratégicos como carvão, petróleo, gás, água, florestas, terá e biodiversidade, os poderosos lançam mão de estratégias a fim de garantir a sobrevivência do seu poder e de seu modelo de negócios.
Num relatório de 10 de junho de 2015, o relator especial para liberdade de reunião e associação das Nações Unidas, constatava que:
“A demanda por matérias-primas, sobretudo nas regiões densamente habitadas, leva à abertura de novos locais de mineração e exploração, gerando conflitos de interesse. De acordo com alguns relatórios, 93% a 99% das regiões cobertas de florestas tropicais, para as quais foram concedidas 73 mil concessões a mineradoras, madeireiras, agricultores e para a exploração de óleo e gás eram habitadas anteriormente. As mesmas fontes indicam que, por exemplo,40% do território peruano foram cedidos pelo governo a empresas que exploram recursos naturais e visam ao lucro. Na Indonésia e na Libéria, respectivamente 30% e 35% das terras estão em mãos do setor privado para fins de exploração de recursos naturais.Neste contexto, não admira, portanto, que surjam gravesconflitos sociais. Em fevereiro de 2015, a ouvidoria do Peru documentou 211 casos de conflitos sociais, dos quais 66% eram ligados à exploração de recursos naturais. Na Colômbia, a ouvidoria participou de 218 audiências com a participação de mineradoras, manifestantes e representantes do governo”. [8].
Maina Kiai descreve casos em que os direitos humanos foram feridos não só em países em desenvolvimento no contexto de atividades de exploração de matérias-primas, como também no Canadá e na Austrália.[9] Assassinatos de ativistas (principalmente na resistência local) se tornam mais frequentes. Segundo a ONG britânica Global Witness, o número de ativistas ambientais assassinados cresce constantemente.[10] Em 2014 foram 116 no mundo inteiro, o que corresponde a dois assassinatos por semana. O país mais perigoso para ativistas ambientais é Honduras, com 101 mortes entre 2010 e 2014. Estes são apenas os casos registrados oficialmente. O número verdadeiro provavelmente é bem mais elevado, porque os assassinatos muitas vezes ocorrem em regiões afastadas. Estão na mira aqueles que questionam o poder e o controle, que apontam para corrupção e injustiça, que não querem se deixar envolver em iniciativas voluntárias da indústria e sim revelar e barrar sua influência política.
Que lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e pessoas do grupo intersexo (LGBTI) sejam ameaçados, não constitui nenhuma novidade. Há inúmeros relatórios [11] denunciando a maneira pela qual o trabalho de ativistas LGBTI vem sendo limitada, mas não me aprofundarei aqui nessa questão. A linha de argumentação se apoia em opiniões de que os direitos LGBTI são valores ocidentais que destroem a imagem da família e a cultura do próprio país. Por isso, LGBTI e ativistas LGBTI são tidos como inimigos de Estado. Jornais publicam seus nomes em listas negras. Isso infelizmente também acontece em países-membros da União Europeia, como a Hungria. Os direitos LGBTI são maciçamente restringidos na Armênia, na Sérvia, na Rússia, em Uganda ou na Turquia, para citar apenas alguns países.
Advogados/as e jornalistas também sofrem restrições, censura e ameaças em seu trabalho. O último relatório de Repórteres sem Fronteira [12] revela a brutalidade com que se age contra jornalistas ambientais, constatando que os atos de violência aumentam anualmente. Desde 2010, pelo menos dez jornalistas ambientais foram assassinados – na Índia, no Camboja, nas Filipinas, na Indonésia e na Rússia. Só em 2015, dois repórteres foram brutalmente assassinados na Índia. Ambos haviam escrito matérias sobre atividades ilegais de mineração, denunciando corrupção. Foram sequestrados e calcinados.
Em vários países, trata-se de duas coisas: barrar as demandas de participação democrática e os protestos contra o"modelo de desenvolvimento", para não pôr em risco o poder econômico e político das elites. É imenso o temor dos governos de protestos e da vontade popular. A perda de poder político é uma grande ameaça e frequentemente a repressão vai de mãos dadas com a garantia de interesses econômicos.Os protestos contra desapropriações fundiárias e megaprojetos não são nem um pouco “bem-vindos”. O financiamento “externo” serve como pretexto e nutre deliberadamente ressentimentos nacionalistas, a fim de desviar os interesses. O vice-presidente boliviano, Garcia Linera, denunciou "think tanks" nacionais e acusou ONGs de serem representantes do “discurso imperialambientalista”. A revogação da licença para Greenpeace Índia equivale a uma declaração de guerra do governo indiano contra todos aqueles que resistem ao modelo de desenvolvimento e crescimento daquele país. Uma coisa é interromper os fluxos de recursos externos e as redes digitais de ativistas nacionais; outra é perseguir judicialmente e mandar segui-los – ambas medidas que não só fazem encolher os espaços de ação como podem acabar totalmente com eles.
Em alguns dos nossos países parceiros essa estratégia é vitoriosa. Na Rússia, a maioria dos defensores de direitos humanos já foi privada de suas principais fontes de financiamento. Muitas ONGs, seja no Quênia, seja na Índia, estão em processo de dissolução. As cabeças pensantes críticas vão para o exílio, como aconteceu na Etiópia e no Egito. Temendo chicanas ou a criminalização, parceiros de ONGs e fundações se retraem. Em muitos países, o clima político piorou dramaticamente contra ONGs e movimentos sociais. Denúncias de que fundações externas sejam agentes do ocidente ou neocolonizadores acontecem em um contexto, em que a carta do nacionalismo é parte da garantia do poder.
**** “Agentes estrangeiros” e “agressão branda” Em 2006, uma nova lei para as ONGs entrou em vigor na Rússia. Em 2012, quando Vladimir Putin voltou ao Kremlin, todas as organizações “que recebem dinheiro do exterior” e “atuam politicamente” foram obrigadas a se registrar como sendo “agentes estrangeiros”. Como quase nenhuma organização obedeceu ao novo decreto, a lei foi revista em 2014, permitindo ao Estado a registrar uma organização mesmo contra a sua vontade nessa lista. Quem não identificar os seus materiais com os dizeres “agente estrangeiros” – um conceito que faz a maioria dos russos pensar imediatamente em espiões e inimigos - precisa pagar multas elevadas. Em maio de 2015, o presidente Putin sancionou a lei que dá aos procuradores do Estado os direitos de declarar “indesejáveis” ONGs estrangeiras. O Conselho Federal colocou doze organizações (em sua maioria, norte-americanas) numa lista, sob o argumento de que suas atividades seriam sinais de uma "agressão branda" contra a Rússia e que o único objetivo dessas fundações seria o de preparar as pessoas a serem convocadas para irem às ruas“na hora H” determinada externamente, como disse o presidente do comitê de política externa, Kossatchev. A primeira organização a ser praticamente expulsa do país no final de julho de 2015 pela Procuradoria Geral foi o National Endowment for Democracy. Também a China parece ver na presença de organizações estrangeiras uma ameaça à segurança, uma espécie de quinta coluna que ameaça a estabilidade social e talvez até mesmo a sobrevivência do próprio governo. O segundo projeto de lei para regulamentar a atividade de ONGs estrangeiras, aprovado em maio de 2015, prevê que praticamente todas as organizações devem se registrar junto às autoridades de segurança, que devem ser responsáveis tanto pela administração como pelo controle. Além disso, as organizações estrangeiras precisam de um patrocinador local que deve assumir a responsabilidade por todas as atividades da ONG internacional. Todas as atividades de “natureza política e religiosa”, que “ferem a segurança interna” ou a “moral social” devem ser proibidas. Essas definições e conteúdos deliberadamente vagos deixam bastante margem a interpretações arbitrárias. Se a lei for aprovada em sua forma atual, organizações chinesas não poderão mais aceitar dinheiro de organizações estrangeiras cujos escritórios ou cujas atividades não foram registrados e autorizados a China. Países menores também tratam de deixar claro que não tolerarão “revoluções coloridas”. “Não haverá Revolução Rosa, Revolução Laranja e nem sequer Revolução das Bananas”, afirmou em 2005 o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, no poder até hoje. Da mesma forma, o (falecido) presidente etíope Memes Zenawi anunciou na TV que não haveria Revolução Rosa ou Verde na Etiópia e fez aprovar uma lei em 2009, pela qual ONGs que atuam na área política não podem ter mais de 10% de suas receitas provenientes do estrangeiro. A cena política no país, já não é mais aberta: todos os 547 deputados do Parlamento eleito em 2015 pertencem ao partido governamental Frente Democrática Revolucionária Popular da Etiópia (EPRDF). Na Europa, o mau exemplo também encontra seguidores. Desde 2014, o governo da Hungria enfrenta organizações apoiadas pelo EEA and Norway Grants, um fundo contra a desigualdade social e econômica na Europa do Leste financiado principalmente pela Noruega. Em julho de 2014, o premiê Orbán alertou contra“ativistas políticos pagos pelo exterior” e que tentaram “impor interesses estrangeiros na Hungria”.O objetivo é desacreditar o trabalho de ONGs críticos ao governo através de uma retórica estigmatizante. Em 2014, a autoridade governamental de controle KEHI começou a investigar ONGS que haviam recebido ou repassado a ONGs húngaras apoio financeiro da Noruega – entre eles, várias organizações renomadas, como a Fundação Ökotárs. **** |
A repressão e as novas leis querem calar qualquer voz crítica que se eleve contra a ação governamental. Permite-se o engajamento da sociedade civil quando é apolítico e quando, por exemplo, continua assumindo tarefas que seriam do Estado no setor social ou ambiental, sem veleidades de participação democrática ou sem querer transformar as origens estruturais da pobreza. ONGs despolitizadas são desejáveis e podem até aceitar dinheiro de fora, ainda que sob maior controle governamental. A separação entre ONGs boas ou inimigas do Estado já ocorre há muito tempo, e as várias novas legislações sobre as ONGs legalizam este processo em vigor.
É preciso que os apoiadores governamentais e não-governamentais de sociedades civis e processos de democratização encontrem respostas também para essa separação arbitrária entre sociedade civil desejada e não-desejada. O debate sobre como os financiadores privados e estatais de sociedades civis devem reagir aos novos desafios dos “espaços que encolhem e fecham - shrinking and closing spaces” - começa de forma hesitante – mas está começando. Em sua publicação mais recente de novembro de 2015, Thomas Carothers tentou resumi-la.[13]
Explorar e avaliar espaços de ação política em contextos complexos fazem parte do negócio de uma fundação política. E não existem muitas estratégias que possam ser empregadas por uma organização internacional em tais situações. A avaliação exige tato e uma investigação responsável, principalmente para saber se e até que ponto a segurança dos parceiros e das parceiras está garantida. Às vezes, isso pode significar ficar no país, “hibernar” e esperar que os espaços de ação voltem a se abrir. A presença no país pode fazer com que o diálogo com os parceiros e as parceiras se mantenha aberto, evitando, em certos casos, que parceiros/as sejam obrigados(as) a terminar seu trabalho imediatamente ou serem presos (as).
A opção de permanecer no país pode significar que as organizações passem a ficar limitadas a temas não-políticos, abrindo mão da visibilidade política. Outra opção seria a retirada completa de um país. A Fundação Heinrich Böll decidiu sair da Etiópia no final de 2012.[14] O espaço de ação política para nossas organizações parceiras era praticamente inexistente.Nos últimos anos, a liberdade de imprensa, de opinião e de reunião foram drasticamente limitadas. Com as leis sobre o papel e a ação das ONGs de 2009 e as regulamentações aprovadas em 2011 chegou-se a um novo ápice do controle político e da restrição da liberdade de ação.
**** Etiópia: sem espaço Entre março e setembro de 2011, seis jornalistas etíopes foram presos e acusados de apoiar o terrorismo. Outros seis jornalistas foram julgados em ausência. Em dezembro de 2011, dois jornalistas suecos foram sentenciados a onze anos de detenção. Em janeiro de 2012, dois jornalistas etíopes receberam 14 anos cada um e um blogueiro no exílio foi sentenciado a prisão perpétua. Em junho de 2012, o conhecido jornalista Eskinder Nega e outras 23 pessoas foram acusadas de terrorismo e também sentenciadas a penas longas e até perpétuas de prisão. Há alguns anos, jornalistas críticos têm sido pressionados e ameaçados em sua segurança. Uma série de jornais deixou de ser publicada, como o Addis Neger em 2009 e Awramba Times em 2011, e muitos jornalistas críticos deixaram o país antes de uma acusação formal. Foi o caso de Argaw Ashine, presidente da Associação de Jornalistas Ambientais da Etiópia e durante muitos anos parceiro da Fundação Heinrich Böll. Ele deixou o país depois que seu nome apareceu em um relatório da embaixada americana na Etiópia, publicado por WikiLeaks. Projeto de lei apresentado em abril de 2012 pelo governo etíope confirmou que, mesmo depois da assinatura de um acordo bilateral, teria sido impossível prosseguir com uma atividade política independente, e que a Fundação Heinrich Böll teria sido extremamente restrita em suas possibilidades de ação. A lei interdita, por exemplo, qualquer atividade direcionada a direitos humanos ou questões de gênero.Além disso, organizações parceiras atuais ou potenciais continuam sujeitas às regras da lei das ONGs, o que significa que não podem atuar nas atividades-fim da Fundação. A sociedade civil, portanto, é privada da sua dimensão política e fica limitada a pôr em prática os objetivos governamentais. As consequências são a despolitização e a autocensura. A Fundação não encontrou outras organizações parceiras que confrontassem essa tendência. **** |
Que os defensores de direitos humanos e do Estado de direito, dos direitos LGBT e de uma política econômica socialmente e ambientalmente justa sejam perseguidos pelos governantes não constitui um fato novo. A novidade é a maneira de agir maciça e desavergonhada – uma evolução que veio para ficar e poderá se tornar ainda mais aguda. Por isso, a limitação massiva de espaços de ação da sociedade civil deve fazer parte da agenda política. A liberdade de opinião, de organização e de reunião são a essência de qualquer democracia. A sua limitação é um desafio para todos os governos democráticos e para a cooperação global. Por isso, o tema deve ser parte da agenda de relações exteriores, do desenvolvimento e dos direitos humanos. Deve ser considerado pelos parlamentos nacionais e se tornar parte dos diálogos globais e das negociações entre governos.
*Traduzido por Kristina Michahelles
[1] Carothers / Brechemacher (2014): Closing Space: Democracy and Human Rights Support under Fire. Carnegie Endowment for International Peace.
[2] Carothers / Brechemacher (2014): Closing Space: Democracy and Human Rights Support under Fire. P. 25, Carnegie Endowment for International Peace.
[3] Drinhausen / Schucher (2015): Zivilgesellschaft unter Druck: Globaler Widerstand gegen Demokratie wächst [Sociedade civil sob pressão: cresce a resistência global contra a democracia]. German Institute for Global and Area Studies.
[4] Carothers / Young (2015): The Complexities of Global Protests. P. 3, Carnegie Endowment for International Peace.
[5] Uma organização que quer receber o selo de doador do DZI (Deutsches Zentralinstitut für Soziale Fragen, Instituto Alemão para Questões Sociais), submete-se voluntariamente a um rígido exame regido por critérios econômicos, jurídicos e éticos, ver em www.dzi.de
[6] Ver também: Gnärig (2015): The Hedgehog and the Beetle; Heidel (2009): Von der Notwendigkeit neuer Formen zivilgesellschaftlichen Engagements. Sechs Thesen [Da necessidade de novas formas de envolvimento da sociedade civil]. In: Social Watch Deutschland/Forum Weltsozialgipfel: Globale Krisen. Soziale Auswirkungen – Politische Konsequenzen; Nuscheler (1998): NGOs in Weltgesellschaft und Weltpolitik: Menschenrechtsorganisationen als Sauerteig einer besseren Welt?; Brown (2009): Creating Credibility – Legitimacy and Accountability for Transnational Civil Society; Davies (2006): The Rise and Fall of Transnational Civil Society; Adloff, Frank (2005): Zivilgesellschaft. Theorie und politische Praxis;Gosewinkel, Dieter; Reichardt, Sven (2004): Ambivalenzen der Zivilgesellschaft. Gegenbegriffe, Gewalt und Macht. WZB.
[7] CIVICUS (2015): State of Civil Society Report. World Alliance for Citizen Participation.
[8] Kiai (2015): Promotion and protection of all human rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the right to development. United Nations General Assembly. Report A/HCR/29/25.
[9] Idem.
[10] Global Witness (2015): How many more? 2014’s deadly environment: the killing and intimidation of environmental and land activists, with a spotlight on Honduras.
[11] Sobre esse tema, ver ainda: ILGA Europe (2015): Promoting and Enabling Civil Society Environment. P. 17ss.; ILGA (2015): State Sponsored Homophobia; Library of Congress (2014): Laws on Homosexuality in African Nations.
[12] Reporters Without Borders (2015): Hostile Climate For Environmental Journalists. Report 2015.
[13] Carothers (2015): The closing Space Challenge - How are Funders responding?Carnegie Endowment for International Peace, novembro de 2015